Jardim Gramacho: uma crise sanitária muito anterior à Covid-19
A pandemia agravou a situação de desemprego e escancarou a crise sanitária vivida em Jardim Gramacho, onde funcionou até 2012 o maior lixao da América Latina
Reportagem: Maria Eduarda Barros e Mariana Assis
Edição: Alexandre Melo
Inaugurado em 1978, o Aterro Sanitário de Jardim Gramacho, um sub-bairro de Duque de Caxias, fez história e operou até junho de 2012. Numa área de 1,3 milhão de metros quadrados e localizado às margens da Baía de Guanabara, funcionou o que ficou conhecido como o maior lixão da América Latina. O lugar servia de trabalho para mais de 2.500 catadores que tiravam dali a sua renda, a partir da coleta informal de materiais recicláveis.
O fechamento do lixão aconteceu como um dos legados antecipados dos Jogos Olímpicos de 2016, cuja magnitude colocaria luz sobre o Rio de Janeiro. Os descartes de cerca de 8 milhões de pessoas que até então iriam para Jardim Gramacho foram deslocados para Seropédica, também na Baixada Fluminense, onde seriam adequadamente tratados no Centro de Tratamentos de Resíduos (CTR). Em 2016, no entanto, por volta de 50 mil litros de chorume vazaram do CTR.
A pressão para que o Estado tomasse providências ecológicas quanto aos problemas ambientais é antiga. Tião Santos, presidente da Associação de Catadores do Aterro de Jardim Gramacho, conta que ao participar do Fórum Social Mundial em 2002, na cidade de Porto Alegre (RS), sentiu fortes indícios de que o Brasil caminhava para construção de uma política nacional de resíduos sólidos, acompanhada da erradicação dos lixões. O prenúncio se confirmou em 2010, quando o Congresso aprovou a Política Nacional de Resíduos Sólidos e determinou o fim dos lixões até 2014. O prazo, entretanto, foi ampliado logo depois para entre 2018 e 2021, a depender do município.
A fim de compensar o fim das atividades em Jardim Gramacho, a prefeitura carioca, à época sob o governo de Eduardo Paes, prometeu revitalizar o bairro, recuperar a área de mangue, qualificação profissional e outras fontes de renda. Grande parte dos moradores de Gramacho vivia dos rendimentos provindos no trabalho no lixão e, uma vez fechado, a situação poderia ser dramática. E vem sendo.
Segundo levantamento feito pela ONG Teto, que atua construindo casas nesta área desde 2013, a renda média per capita dos moradores de Jardim Gramacho é de 331, 96 reais por mês, o que é, na prática, 11 reais por dia. Ou o preço de duas passagens da única linha de ônibus que atende o bairro, gerido pela empresa Reginas.
Com a pandemia de Covid-19, o rendimento foi ainda mais enxugado. Thaís*, que trabalha desde maio na ONG Haja, conta que os pedidos por alimento aumentaram significativamente e que os catadores ficaram de mãos atadas frente à diminuição de materiais recicláveis.
Se antes a matéria prima do trabalho era em abundância, seja pelas fábricas que despejavam toneladas de pets semanalmente, seja pela própria referência que Jardim Gramacho se posicionava no ramo de reciclagem no estado, hoje catadores precisam pagar caminhões - e também o frete - para que o material chegue até eles.
Essa nova dinâmica de trabalho faz despencar o salário, que já vinha em decréscimo nos últimos anos. Nos casos de associações e cooperativas legalizadas, os catadores também acabam por reservar uma parte do dinheiro para investir em EPIs, os equipamentos de segurança contra a covid-19.
Em Jardim Gramacho também há registro de vazadouros clandestinos, cujo nível de informalidade e condições trabalhistas é quase inexistente. Entregues à própria sorte, os catadores se veem sem escapatória, muitas vezes.
Quando o lixão foi fechado, havia a expectativa de que a mão de obra gramachiniana seria aproveitada e potencializada. “Eu não sou o problema, e sim a solução para a gestão de resíduos”, pontua Tião Santos, relembrando que a lida diária de mais de três décadas os faz especialistas em reciclagem. As habilidades, no entanto, não foram consideradas. E nem as obras que prometiam estabelecer o pleno funcionamento do saneamento básico e a falta d'água, foram executadas.
“A gente chega a gastar 300 reais com água por mês”
O principal problema apresentado pelos moradores e, endossado por ONGs ouvidas pela reportagem, é a falta de água encanada em Jardim Gramacho. Não há. A ausência é crônica e dura mais de 10 anos em algumas ruas, relata Fatinha, diretora da ONG Cheifa.
Uma das maneiras de se obter água própria para o consumo é pagando por caminhão pipa. Rita*, 52, reclama de gastar, em média, 300 reais por mês. Ainda assim, ela precisa racionar e regular rigidamente a gestão da água para que dure o máximo possível e não precise desembolsar mais dinheiro.
Outra maneira de ter acesso à água é tentando captá-la através das chamadas bombas comunitárias, que correm entre quarta e sábado. “Puxamos a água do cano e ligamos às nossas casas”, explica Rita. Eventualmente, no entanto, o mecanismo não funciona e também não atende todas as ruas.
Numa das casas visitadas pela reportagem, a água que sai da cisterna é amarela, imprópria ao consumo. Os moradores relataram que há épocas em que a cor da água é preta
Vídeo: Maria Eduarda Barros
Na impossibilidade de comprar água e não dispondo das bombas comunitárias, “estocar” água da chuva viabiliza a lavagem de roupas e outros usos que não seja o consumo direto. “A gente adora quando chove”, Fatinha comemora em tom triste.
Para além de ser um direito universal, a água também faz parte do protocolo preventivo mundial estabelecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) contra a Covid-19. Cidadãos do mundo inteiro são orientados a lavar a mão constantemente com água e sabão, para que reduza as chances de infecção pelo vírus.
Lúcia* riu com certo desespero ao ouvir as recomendações sanitárias contra a doença. “A gente nem tem água aqui”, conta a senhora que é diabética e hipertensa- o que a insere no grupo de risco.
Procurada pela reportagem a respeito da falta de água encanada na região, a Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae) diz estar investindo em obras de assentamento em Jardim Gramacho, o que reforçará o abastecimento. Também destacou que o “crescimento desordenado e a ocupação irregular do solo de forma contínua devem ser considerados quando se aborda o tema saneamento/infraestrutura”.
“Como ficar em casa se eu recebo por dia?”
Lúcia*, 59, vive em Gramacho há trinta anos, vinte dos quais foram dedicados a uma rotina no lixão - ou “rampa”, como chamam os moradores antigos da região. Com uma renda média de 200,00 por dia trabalhando como catadora, ela criou seus sete filhos. “Vi gente ficando milionária, comprando carro e casa com o dinheiro que tirava na rampa”, ela conta relembrando os tempos antes do lixão fechar em 2012. Assim como para muitas famílias de Gramacho, o anúncio do fim do maior lixão da América Latina causou em Lúcia desespero e insegurança sobre o futuro. O medo tornou-se realidade para a maioria: apesar das promessas da prefeitura carioca, os catadores do local ficaram desamparados.
Lúcia, por obra do acaso, foi remanejada para uma das três cooperativas criadas pelo governo do estado, mas o passar dos anos mostrou que a tentativa de inclusão de ex-catadores não foi suficiente. A chefe de família tem uma rotina desgastante, e passa oito horas em pé de segunda a segunda na esteira de reciclagem da cooperativa composta e sustentada por cinco mulheres ex-catadoras. “Eu ganho por dia trabalhado, sem direitos [trabalhistas] nenhum. Tem mês em que eu tiro 200,00 reais”. A renda da casa de Lúcia hoje é fruto uma colaboração entre os filhos, dois dos quais também estão envolvidos no caminho do lixo, um atuando como catador e outro empregado em uma cooperativa ilegal de reciclagem.
A pandemia deteriorou as condições de vida da população de Gramacho, que tem, na maioria, sua renda associada ao lixo. Thaís*, 30, filha de Lúcia e membro da organização local HAJA, conta que o lixo do bairro diminuiu drasticamente desde março. “Nós vimos os catadores ficando sem nada e eles não têm nenhuma experiência para conseguir outro trabalho.” Mesmo Lúcia, que faz parte de uma cooperativa legalizada, ficou sem qualquer renda entre setembro e outubro devido à escassez de lixo no bairro, e o auxílio emergencial do governo federal tornou-se crucial para a sobrevivência da família.
“Como ficar em casa se eu recebo por dia? Meu filho [que trabalha como catador] não ficou em casa nenhum dia durante a pandemia, precisava trabalhar”. O dilema de Lúcia é o mesmo de mais de 38 milhões de brasileiros que vivem na informalidade, segundo dados do IBGE, e se viram impossibilitados de praticar o isolamento social, uma das medidas recomendadas pela OMS para prevenir a transmissão da Covid-19. E, mesmo dentro de casa, estar isolado é um desafio. Durante a pandemia, além das oito pessoas habituais que dividem os cômodos, a família recebeu dois novos membros, as gêmeas netas de Lúcia, que nasceram em outubro.
O silêncio como escudo protetor
O fechamento do lixão de Gramacho teve repercussão positiva na mídia, que considerou uma medida benéfica para a população e para o meio ambiente. Por outro lado, o evento significou o desemprego de aproximadamente 2.500 catadores, de acordo com pesquisa da ONG Recicloteca. A maioria destes nunca conseguiu se inserir no mercado de trabalho, e muitos continuaram sobrevivendo dos lixos depositados ilegalmente até hoje na região conhecida como “rampinha”. Moradores do bairro relatam que havia apenas duas opções para os catadores e suas famílias: continuar no lixo ou migrar para o tráfico; a segunda acolheu principalmente adolescentes e jovens do local.
“As pessoas têm medo que os transbordos sejam denunciados e elas fiquem sem trabalho”, conta Thaís. A presença de estranhos - sobretudo jornalistas - causa imediatamente um sentimento de medo e desconfiança na comunidade de Jardim Gramacho. Os moradores contam que poucas pessoas “de fora” visitam o bairro, a não ser os voluntários de ONGs, com quem já estão acostumados. Apesar de receptivos e hospitaleiros, os residentes do bairro se fecham, em geral, quando perguntados sobre o lixo na região. Falar sobre os lixões ilegais (ou transbordos, como são conhecidos) e sobre condições de insalubridade de trabalho transforma a atmosfera das conversas e entrevistas. As vozes ficam mais baixas e as tentativas de mudar de assunto são perceptíveis.
A insegurança é compreensível, visto o histórico de ações e abstenções do poder público e privado no lugar. A população admite as mazelas do trabalho no lixo, lembram dos problemas de pele adquiridos, dos conhecidos que perderam partes do corpo, dos odores insuportáveis e dos traumas de encontrar corpos em meio ao lixo. Ainda assim, estas lembranças parecem mais agradáveis do que a realidade, em que não há trabalho, não há qualificação e não há assistência estatal. Para os moradores da região, os riscos do lixo parecem valer a pena quando comparados ao desemprego e ao desespero de não saber de onde vão tirar dinheiro para comer nos próximos dias. Gramacho convive com dilemas que não deveriam existir.